terça-feira, 6 de fevereiro de 2007

O Medo da Sombra

O Medo da Sombra
SílvioLeitão da Cunha

Antes de recordar a reação produzida pela descoberta da fotografia no mundo das artes e das letras, não se pode deixar de imaginar o que terá sido a resistência entre a média da humanidade, sempre pouco flexível, contra o extraordinário invento. Não seria inconseqüente acreditar na força de semelhante resistência, capaz mesmo de deformar o critério dos homens de elite, como por exemplo de Baudelaire e de Daumier. A fotografia não foi um achado do séc. XV, embora nessa época os elementos de onde ela saiu já fossem conhecidos. Felizmente, porque então teríamos a lamentar mais algumas fogueiras e alguns mártires.Embora em 1839 a eletricidade, o caminho de ferro e os hieróglifos estivessem dominados pelo homem, isso não quer dizer que ele já se tivesse libertado de todos os terrores ancestrais. As superstições abundavam mais que agora e entre elas as que se relacionavam com a figura humana e sua representação. Ainda hoje, quebrar espelho é azar. Isso vem da crença em que o reflexo, não só no espelho, como na água ou outra superfície brilhante, é alguma coisa externa ao homem, mas que se lhe assemelha "como um irmão", a própria sombra e, em suma, a alma. Qualquer acidente ou perigo acontecido ao vulto refletido era como se fosse ao sujeito em carne e osso. E isso ocasionava hábeis cuidados. Cobrir espelhos quando morre gente ainda se usa. Hoje será tradição, mas não faz muito tempo era medo de que o espírito do defunto carregasse o reflexo de quem passasse pelo vidro metalizado. A sombra é a primeira representação não só do corpo humano como também da sua alma. É crença dos primitivos e também a encontramos na cultura antiga. No XI canto da Odisséia, Ulisses evoca os mortos, que são chamados sombras, eidola.

O caos é a grande sombra e o reino das sombras é a morte. Os fotógrafos de 1850 eram manipuladores de sombras, da família de Édipo e Cassandra. Na criança e no primitivo há um medo instintivo da sombra. Facilmente ela se torna um tabu de grande poder sugestivo. Frazer assinala numerosas manifestações de medo da fotografia entre os selvagens. Alguns não se deixavam ficar sós com retratos que os missionários penduravam nas paredes, temerosos de que estes se animassem e os atacassem. Em várias regiões da Europa foi observada a crença de que não se deve fazer a própria efígie, sob pena de morrer. Nos ilhas de Salomão, todo o indivíduo que pisar na sombra do rei é punido de morte, e, em outros pontos da Oceania, os indígenas não saem jamais de casa ao meio-dia, hora em que não têm sombra, fato que os aterroriza. No folclore comum, ao norte da Europa, o Diabo não tem sombra, assim como tudo o que lhe pertence, e os habitantes do Inferno de Dante não projetam suas formas no chão. No relato de Goethe, repete-se a história do guerreiro Tutaikawa, do qual a força diminuía e aumentava com o comprimento de sua sombra. Ele é finalmente assassinado ao meio-dia, quando era menor o seu vulto na terra. No Romantismo, a sombra é um motivo melancólico e trágico muito freqüente.Partout où j'ai voulu dormir,Partout où j'ai voulu mourir,Partout où j'ai touché la terre,Sur ma route est venu s'asseoir,Un malheureux vêtu de noir,Qui me ressemblaí comme une frère.Depois de Musset, Baudelaire, en Le Jeu:Voilá le noir tableau qu'un un rêve nocturneJe vis se dérouler sous mon oeil clairvoyant;Moi-même, dans un coins de l'antre, taciturneJe me vis accoudé, froid, muet, enviant
A sombra é o duplo, a dualidade do homem e assume então as formas mais angustiosas em Maupassant, Dostoievsky e R. L. Stevenson (Le Horla, O Duplo e Dr. Jekyll and Mr. Hyde). Assim a própria imagem do homem é algo estranho e capaz de desencadear dramas terríveis, e o medo de fazer o próprio retrato, sombra fiel e inconfundível de si mesmo, é uma manifestação generalizada com raízes no fundo comum das superstições da humanidade. E há uma gama e uma gradação de escrúpulos, desde os povos da antiguidade e dos selvagens atuais, até o nosso tempo, onde se confirmam nos países civilizados. Os atos de magia sobre a efígie pessoal ainda hoje se praticam e nisso se funda o temor de entregar o próprio retrato em mãos estranhas, que possam sobre ele operar malefícios mortais. É portanto muito compreensível a desconfiança pública com que foi recebida a descoberta da fotografia. E perfeitamente explicáveis os qualificativos de sacrílega e infernal, com que a estigmatizou uma gazeta de 1839.

(A Manhã, Rio de Janeiro, 13 abr. 1947)

Quem é Sílvio Leitão: um instantâneo ou um átimo?

Muito admirado por grandes poetas, artistas e intelectuais brasileiros, tinha o hábito de lançar livros com pouco mais -- ou menos -- de 100 exemplares. Joaquim Paiva tem um ensaio de Sílvio Leitão, todo impresso em goma bricomatada, feito, se não me engano, entre as décadas de 30 e 80. O mágico é que os referenciais temporais se perdem, devido à escolha dos temas e ao uso da goma bricomatada, que elimina o referencial que é a tecnologia, o material sensível etc usado em tal ou tal época... O texto que coloquei em 3 partes acima, conforme podem ter notado, é de 1947 (!).